sábado, 22 de agosto de 2009

Modelos europeus na pintura colonial

Ao estudar a arte colonial no Brasil, a historiadora construiu leituras e análises, ainda hoje contemporâneas. Enquanto muitos buscavam originalidades coloniais brasileiras, ela trabalhou com influências, releituras e apropriações artísticas a partir do uso de gravuras como modelos. Contudo,não diminuiu o valor artístico das obras analisadas.

Hannah Levy

Arte colonial, modelos europeus, apropriações.

É fora de dúvida que grande número de pintores nacionais se utilizou de modelos da arte européia. Daí ocaráter eclético da pintura colonial, vista em conjunto,e daí também o caráter heterogêneo que se nota freqüentemente nas obras de um mesmo artista. Como modelos europeus – principalmente gravuras – eram de autores e estilos diferentes, só os artistas nacionais de maior talento conseguiram dar a suas obras um caráter de unidade estilística e um cunho todo pessoal. Apresentando, a seguir, alguns exemplos de pintores coloniais, cujas obras são cópias de obras européias, teremos ocasião de documentar a nossa afirmação.O título deste artigo já indica que não deve o leitor esperar encontrar aqui um estudo sistemático e completo de todas as pinturas do Brasil colonial. Com este trabalho, oferecemos apenas uma espécie de enumeração de determinadas obras coloniais, cujos modelos europeus conseguimos identificar. Começaremos pelo “caso” mais interessante, o deManuel da Costa Ataíde, um dos maiores representantes da arte colonial mineira.Vários especialistas do assunto, como os srs. Salomão de Vasconcelos e Luís Jardim,1 já afirmaram que Manuel da Costa Ataíde, para a execução de algumas das suas obras, se inspirou, indubitavelmente, em gravuras européias. Este fato ficou comprovado pelos estudosdo sr. Luís Jardim a propósito da obra do Ataíde na Igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara.2 Às obras do Ataíde, de inspiração européia, podemos agora acrescentar seis painéis da sua autoria. As seis pinturas em apreço se encontram na capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, eforam executadas, segundo documentos encontrados,entre 1803 e 1804.
Estes painéis representam as seguintes cenas:

1. A promessa de Abraão
2. Restituição de Sara a Abraão
3. Os anjos anunciam a Abraão o nascimento de um filho
4. Abraão oferece hospitalidade aos anjos
5. O sacrifício de Isaac
6. A morte de Abraão

Podemos apontar exatamente os modelos em queManuel da Costa Ataíde se inspirou, ou melhor, que ele copiou. Trata-se de seis gravuras contidas em uma edição ilustrada da Bíblia , assim intitulada: Histoire Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Surles Hommes Depuis le commencement du MondeJusqu’aux Temps prédits dans l’Apocalypse, Tirée Del’Ancien et du Nouveau Testament, Représentée En cinqcent Tableaux Gravez d’aprés Raphael et autres grandsmaitres et Expliquée Par les paroles même de l’Ecritureen Latin et en François, 3 Volumes en qto. Dédiée à LaReyne Par Demarne Architecte et Graveur Ord.re de SaMajesté. A Paris chez l’Auteur rue du foin, entrant par larue de la Harpe, au Heaume, quartier de Sorbonne. Ilfournira les mêmes 500 planches sur telle grandeur depapier que l’on souhaittera. Um exemplar desta obra,datado de 1728, atualmente conservado na Biblioteca Nacional, pertenceu à Real Biblioteca. Indicamos este livro como tendo servido de modelo a Ataíde,pelas seguintes razões: Duas cenas da capela-mor de São Francisco de Assisde Ouro Preto – A promessa de Abraão e Os anjos nacasa de Abraão – são cópias executadas segundo a famosa Bíblia de Rafael, na segunda loja do Vaticano.3 A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui, pelo menos, quatro séries completas de gravuras executadas segundo esta obra do ateliê de Rafael, concluída em 1519, e que tantas vezes foi reproduzida pelos gravadores, durante os séculos 16, 17 e 18. Mas é pouco provável que o artista mineiro fosse procurar essas duas cenas de Rafael em um livro e as quatro restantes, de autores diferentes, em outro, uma vez que a obra citada de Demarne lhe oferecia seguidamente todas as cenas por ele reproduzidas na cape-la-mor de São Francisco de Ouro Preto.4 Passemos a confrontar as estampas com as pinturasdo artista mineiro. Note-se que Manuel da Costa Ataíde, em todas estas pinturas, observou fielmente o modelo das gravuras no que concerne à composição geral, à distribuição das luzes e sombras, à posição das figuras e à indumentária. Observe-se, também, que opintor mineiro, em todas essas obras, simplificou os planos de fundo (paisagem ou arquitetura) em comparação com os das gravuras e que, quase sempre, aproveitou das estampas apenas os grupos principais do tema representado, eliminando figuras ou cenas não diretamente ligadas ao assunto principal. A nosso ver, esta redução das cenas a seus grupos principais foi motivada pelas dimensões do espaço de que dispunha o mestre de Ouro Preto. As cenas Abraão oferece hospitalidade aos anjos e Restituição de Sara a Abraão constituem exemplos típicos de como Manuel da CostaAtaíde procedeu nessas reduções. Não tratou de transformar a composição de Demarne. Pelo contrário: conservou cuidadosamente todos os pormenores das estampas, limitando-se a deixar simplesmente de lado os grupos que não lhe interessavam. É curioso verificar que mesmo mutilando, por assim dizer, a composição original do gravador, Ataíde não introduz senão modificações insignificantes na composição dos grupos que ele aproveita. E nem por isto as suas pinturas deixam de aparecer como composições artisticamente completas. Esta circunstância, de resto, é menos um índice da capacidade artística do Ataíde do que um sinal do pouco valor das estampas, pois em nenhuma obra-prima seria possível modificar a composição sem destruir a obra ou, pelo menos, afetar profundamenteo seu caráter. Indicaremos mais adiante algumas ligeiras diferenças que existem entre os modelos e as pinturas do Ataíde. Antes, porém, desejamos chamar a atenção para ofato de que o artista mineiro consagra um carinho especial a todos os pormenores pitorescos ou anedóticos, encontrados nos modelos e suscetíveis de dar às cenas um caráter mais íntimo e mais diretamente familiar. Assim é que ele reproduz fielmente, por exemplo,na cena da restituição de Sara, o cachorrinho; na cenada refeição dos anjos, o prato fumegante trazido pelocriado, os vasos de vidro, os pratos na mesa, o copona mão do médico, a forma característica do pé damesa, etc. Na sua ânsia de dar um aspecto convincente e humano às cenas sagradas, chega a inventar por-menores pitorescos, que não se encontram em Demarne, como, entre outros, o da escarradeira porbaixo da cama de Abraão.Aludimos a esse apego de Ataíde aos pormenores, por nos parecer uma característica geral da arte desse pintor. Torna-se interessante apreciar, sob este ângulo, as demais obras de sua autoria. Passemos agora a indicar as diferenças que se observam entre os modelos e as pinturas do artista de Minas. Como já dissemos, estas diferenças são pequenas e, salvo em dois casos, não parecem intencionais, explicando-se naturalmente pelo fato de se tratar de cópias, com a transposição de uma técnica de pintura (gravura) para outra (óleo mural), e tendo-se em vista a alteração das dimensões. As cenas que acusam diferenças mais notáveis, não explicáveis pelas razões que acabamos de indicar, são as seguintes: Os anjos anunciam a Abraão o nascimento de um filho e A morte de Abraão. A primeira, cópia de Rafael, além da simplificação habitual do fundo, distingue-se pela modificação na atitude do anjo colocado ao centro. Ao passo que a gravura-modelo apresenta esse anjo de perfil, olhando para o Patriarca, Ataíde volta a cabeça do mensageiro de modo que ele se vira para um dos companheiros celestes. O artista pensou, talvez, que a cena ficasse assim mais animada, ou quis acentuar mais a parte central do quadro, como parece indicar, igualmente, a árvore disposta sobre a colina, ao fundo. Ataíde obedeceu, assim, provavelmente, à seguinte idéia, aliás acertada: tendo eliminado as curvas das montanhas, que,no original de Rafael e na gravura de Demarne, acompanham o contorno dos três anjos, era preciso substituir esse elemento da composição por outro. Daí aárvore sobre a montanha, e daí, também, a modificação na posição da cabeça do anjo. Em resumo: em vez da fusão harmoniosa das figuras com a paisagem, Ataíde procura destacar mais os anjos.Na cena A morte de Abraão, a modificação concerneigualmente à composição geral. Na gravura de Demarne, o primeiro plano à esquerda mostra uma daquelas grandes figuras, vistas de costas, que são conhecidas sob o nome de figuras repoussoires, e que os artistas barrocos tantas vezes utilizavam em suas composições. Como essa figura teria ficado muito próximo e seria muito semelhante, em suas linhas curvas, à moldura em que Ataíde enquadrou as suas pinturas, o artista mineiro resolveu do seguinte modo o problema: ao lado da mulher em pranto, figurou uma porta retangular, que lhe oferecia um contraste eficaz com a moldura curva. Assim fazendo, recuou toda a cena um pouco mais para o fundo, e nos sugeriu a impressão de que estamos olhando para o quarto de Abraão, ao passo que, na gravura de Demarne, o espectador julga estar dentro do quarto. Por esse meio, Ataíde reduz, também, o tamanho da figura feminina, sem embargo de conservar, nos demais pormenores, os traços do modelo: posição, indumentária, gestos. As ligeiras diferenças nas cenas restantes são, repetimos, mínimas. Notar-se-á, por exemplo que em A promessa de Abraão, o pintor mineiro modificou um pouco o rosto e os cabelos da figura de Deus, bem como os rostos e os cabelos das figuras de anjos, que sustentam os braços do Criador.5 A obra de Demarne serviu de modelo não apenas ao Mestre Ataíde, mas, também, àqueles artistas desconhecidos (provavelmente portugueses) que executaram os azulejos da Capela da Jaqueira, no Recife. Trata-se de seis cenas da história de José do Egito, e que são cópias de estampas de Demarne.6 Ao contrário do que aconteceu com as cópias do Ataíde, onde os fundos aparecem simplificados, os executantes dos azulejos por vezes ampliaram e enriqueceram os fundos das cenas, tal como em José e a mulher de Putifar. Como, nos demais pormenores, os azulejos reproduzem exatamente as gravuras de Demarne, não precisamos demorar-nos no confronto desses originais com as cópias.Passemos agora a um outro antigo livro de devoção, que inspirou pelo menos dois artistas mineiros, e de que, também, há um exemplar nas coleções da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Referimo-nos à Historia e celebriores veteris testamenti iconibus representatae et ad excitandas bonas meditationes selectisepigrammatibus exornatae in lucem datae à ChristophoroWeigelio, Noribergae 1712. Esta Bíblia, com o seu texto em latim e alemão, forneceu modelos para quatro pinturas, em Minas Gerais. Adão e Eva no Paraíso eAdão e Eva expulsos do Paraíso, obras atribuídas a Antônio Rodrigues, na Igreja Matriz de Cachoeira do Campo, foram extraídas das estampas n. 1 e 2 desta obra. Caim e Abel e Abraão oferece hospitalidade aos anjos, pinturas atribuídas a João Nepomuceno Correia e Castro e existentes no Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo, são imitadas das gravuras 3 e 10 da mesma obra. Estas quatro obras,sem possuir grande valor artístico, nos interessam particularmente por duas razões. A primeira se refere à tese que sustentamos no começo deste trabalho, a saber: somente artistas nacionais de real talento conseguiram transformar os modelos copiados, mesmo quando medíocres, em algo de pessoal e em obras que tenham unidade de estilo. O mais ligeiro confronto das cópias realizadas por Ataíde com as executadas pelos artistas de Congonhas e de Cachoeira do Campo basta para justificar esta afirmação. Tanto os modelos que serviram ao Ataíde como as gravuras da Bíblia de Weigel7 são obras ecléticas, medíocres, obras, por assim dizer, de segunda mão e de segunda classe, excetuando-se as cópias de Rafael. Entretanto, ninguém negará que as pinturas de Manuel da Costa Ataíde possuem um valor artístico e decorativo incontestável, ao passo que as cenas copiadas da Bíbliade Weigel oferecem, além do interesse puramente histórico, apenas um certo “charme” de ingenuidade. Este caráter ingênuo, porém, não estava absolutamente na intenção dos artistas e resultou apenas da falta de capacidade técnica. Um exemplo, entre outros: a perna direita da figura de Adão [Adão e Eva no paraíso]. A segunda razão pela qual julgamos oportuno reproduzir as obras e os modelos de Antônio Rodrigues e de João Nepomuceno Correia e Castro se refere aum problema particular da crítica de fontes. Possuímos documentos da época sobre os painéis da Matriz de Cachoeira do Campo bem como sobre as pinturas da Igreja do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, de Congonhas. Quanto a Antônio Rodrigues, consta o seguinte: “Neste ano de 1755 a irmandade mandou fazer a pintura de todo o teto da igreja, paredes laterais da capela-mor e coro. Esse trabalho foi tomado pelo pintor Anto Rodrigues pela quantia de um conto e duzentos mil rs”; quantia que foi ainda aumentada com o acréscimo de obras além docontrato e que nos parece bastante elevado atento o valor da moeda naquela época.8 Sobre a obra de João Napomuceno Correia e Castro, encontram-se os seguintes lançamentos no Livro de Despesa do Santuário, de 1777 a 1779: a fls. 12 v: “Re-cebeu 2923/4 vs a conta da pintura do corpo da capela”.Entre 1779 e 1782, a fls.13: “Recebeu 363/4 e 1 v restodo pro ajuste da pintura da capela”. E mais: “1661/2 e 5 vsajuste da pintura”. Encontram-se lançamentos análogos com referência ao período de 1781 a 1787. Se examinarmos as duas cenas do Paraíso, na Matriz de Cachoeira do Campo, e se as compararmos comas cenas correspondentes do modelo de Weigel, ficaremos convencidos de que as primeiras são obras de um mesmo pintor. Como o documento não menciona outro nome, não há razões para deixar de atribuir esses painéis à autoria de Antônio Rodrigues. Não se dá o mesmo, porém, com as pinturas do Santuário de Congonhas que, à vista de documentos existentes, são atribuídas a João Nepomuceno Correia e Castro. Há manifesta diferença de qualidade ou, pelo menos, de habilidade técnica, entre a cena Caim e Abel e acena Abraão oferece hospitalidade aos anjos. Essa diferença é tão grande que se torna difícil admitir tratar-se de obras de uma mesma pessoa. Vale a pena confrontar mais atentamente os modelos da Bíblia de Weigelcom as pinturas do coro da Igreja de Congonhas. Em ambas as cenas, precisava o artista brasileiro transformar a disposição vertical em disposição horizontal. No primeiro painel, Caim e Abel, resolveu ele o problema de um modo bem simples: conservou as duas figuras, o altar, as ovelhas, etc., exatamente iguais, nãoo preocupando a circunstância de que, com esta solução, a figura de Caim, por exemplo, ficaria bastante confusa no tocante à parte inferior do corpo. Na cena Abraão oferece hospitalidade aos anjos, entretanto, percebemos uma solução bem diferente e bem superior do mesmo problema de mudança da disposição vertical para a horizontal. Neste painel, o artista conserva igualmente as figuras da estampa e, também, o arranjo geral da composição. Mas, em contraste absoluto com o copista de Caim e Abel, elimina ou modifica determinados elementos da gravura, que correspondiam à disposição vertical. Assim, foi suprimida a árvore à direita, bem como a linha ascendente do teto da tenda, a cuja porta aparece Sara. Em lugarde conservar essas linhas, que ultrapassariam os limites da gravura, acentuando assim o movimento diagonal-vertical, o artista de Congonhas acentua a linha horizontal; em vez da árvore e da posição da ten-da em perspectiva, ele dispõe a mesa diante de uma parede lisa, sublinhando além disso o movimento horizontal com os seguintes recursos: substitui a mesa oblonga da gravura por uma grande mesa que se estende paralelamente à parede do fundo, esta últimade sua invenção, e ao banco comprido, igualmentecriado pelo copista. Além disso, coloca todas as figu-ras em torno do centro do painel. Assim, o fundo da paisagem à esquerda, por exemplo, aparece livremente com a sua linha horizontal de montanhas, enquanto o lugar correspondente, na gravura, se distingue pela variedade de linhas e formas movimentadas. A Igreja de Bom Jesus de Matozinhos conserva na sacristia mais três painéis, representando respectivamente O sacrifício de Isaac, Isaac abençoa Jacó e Transfiguraçãode Cristo. Existe, também, uma Descida da Cruz, na capela-mor. Os painéis O sacrifício de Isaac e Transfiguração de Cristo são ainda mais ingênuos e primitivos do que a cena Caim e Abel. O painel Isaac abençoa Jacó e, sobretudo, a Descida da Cruz revelam, porém, certa analogia com o painel Abraão oferece hospitalidade aos anjos. É inteiramente inadmissível a atribuição de todas essas pinturas a um único artista.9 Mesmo conjeturando que o copista tenha sido um pintor fraquíssimo, sem personalidade alguma e dependendo exclusivamente dos seus modelos, não é lícito admitir tamanhas diferenças de estilo e de qualidade no mesmo autor. A hipótese de um pintor copista fraquíssimo, aliás, nem é viável, pois podemos verificar, pelo confronto de modelos e cópias, que, no caso de Caim e Abel, estamos diante de um copista inteiramente passivo e mecânico, ao passo que o outro painel (Abraão oferece hospitalidade aos anjos) revela um copista que pensa e age com personalidade. Evidente-mente, não podemos decidir qual dos dois – o mero copista ou o pintor de maior personalidade – é o referido artista João Nepomuceno Correia e Castro. Só o aparecimento de outros documentos ou de outras obras poderá esclarecer a questão. Que João Nepomuceno Correia e Castro costumava trabalhar com o auxílio de estampas, fica evidenciado pelo seguinte trecho de seu testamento: “Todas as Estampas que tenho, riscos e debuxos os deixo a Frano e Bernardino de Senna meus Aprendizes”. (Original datado de 18 de dezembro, existente no Arquivo da Cúria de Mariana.)Por enquanto, falamos apenas sobre obras cujos autores nos são conhecidos ou que podemos relacionar com outros nomes conhecidos. Trataremos agora de três painéis cujos modelos conseguimos encontrar, mas de cujos autores nada sabemos. Trata-se de três painéis da série de 16 pinturas, conservadas na Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro. Duas dessas obras, Cristo despede-se da Virgem e Lava-pés, são tiradas de um mesmo livro, a Bíblia ilustrada, editada por João Sadeler (ou Sadler) na última década doséculo 16. Um exemplar dessa preciosa Bíblia pertence, como os demais citados neste artigo, às ricas coleções da Biblioteca Nacional, provenientes da Real Biblioteca. As duas obras da Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo se encontram na parte Passio, Mors Et Resurrectio DN. NostriIesu Christi, às fls. 392 e 394 da Bíblia de Sadeler. As estampas desta parte foram desenhadas por João Stradanus e gravadas por Philipo Galle.10Poderemos repetir aqui algumas observações já feitas ao compararmos as obras mineiras com seus mode-los. O pintor desconhecido dos painéis do Carmo (ou os pintores desconhecidos que trabalhavam em um mesmo ateliê) copiou fielmente o modelo, no que serefere à composição, à distribuição dos tons luminosos e sombrios e, também, no que concerne aos pormenores de atitudes, aos objetos menores, à indumentária, etc. Em ambas as obras observa-se igualmente uma redução parcial da cena quanto ao número das figuras representadas, bem como uma simplificação parcial dos fundos. Quanto à exatidão dos pormenores, basta olhar para os gestos expressivos das mãos, cujas atitudes (inclusive as posições um pouco amaneiradas dos dedos) foram minuciosamente conservadas pelo copista. Os painéis do Carmo traduzem perfeitamente o caráter dramático e agitado das representações gravadas. A nosso ver, os painéis oferecem até um efeito mais dramático de que o das próprias gravuras originais, pela maneira violenta com queo pintor anônimo imita e acentua, em linhas escuras, todos os contornos, todas as pregas dos panejamentos,todas as rugas dos rostos, etc. Por outro lado, a impressão de agitação, suscitada pelas pinturas, resulta, também, da circunstância de haver o pintor, simplificando os fundos, concentrado – talvez involuntariamente – todo o interesse sobre as figuras humanas. Um exemplo: a gravura Cristo despede-se da Virgem apresenta, além do grupo principal, copiado pelo pintor, não apenas todos os apóstolos em grupos que contrabalançam o efeito do grupo em torno da Virgem e de Cristo, mas também um vasto espaço arquitetônico, dentro do qual as figuras circulam livremente, e cuja vista se abre sobre um fundo claro onde se destacam torres, cúpulas e palácios. Todo este espaço arquitetônico, bem como o fundo, foi suprimido pelo copista, ficando assim o espaço do painel muito mais estreito e as figuras mais apertadas. Exatamenteo mesmo acontece na pintura Lava-pés. Pela supressão do fundo à esquerda e de todo o lado esquerdoda gravura, o espaço do nosso pintor fica inteiramente ocupado pelas figuras que, deste modo, aparecem mais acentuadas e, pelo aperto, mais agitadas. Se nada sabemos sobre o autor desses painéis, temos entretanto um indício quanto à época em que, aproximadamente, foram executados. Tal indício nos é fornecido pelo modelo da Ascensão de Cristo. Este painel da Ascensão é cópia de uma estampa que, entre outras, ilustra um missal de 1782, encontrado pelo sr. Luís Jardim na Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina. Não temos evidentemente nenhuma razão para supor que o artista do painel da Ascensão se haja servido precisamente desse missal. Poderia ele ter encontrado a mesma gravura em outro missal, ou em estampa avulsa. Em todo o caso, a estampa utilizada não pode ser de data posterior ao ano da edição do missal, isto é, 1782. Não conhecemos o autor da gravura. Ernesto Soares,em seu livro Francisco Bartolozzi e os seus discípulos em Portugal,11 indica uma série de missais portugueses, saí-dos dos prelos da antiga Imprensa Régia. Na relação fornecida por esse autor, figura, entre outras, a edição de um Missale Romanum ex Decreto... de 1793, do qual três estampas são iguais às do missal de 1782. Algumas,inclusive a do frontispício, foram repetidas em ediçõesulteriores. Pelo confronto dessas estampas de autores identificados e pela indicação de Soares, quando diz que as estampas “todas abertas a buril, mostram manifesta influência da escola de Joaquim Carneiro da Silva”,12podemos concluir que o autor da estampa Ascensão de Cristo, copiada pelo artista da Igreja de Nossa Senhorado Carmo, também se deve encontrar entre os gravadores dessa escola. Assim, temos como data mais provável da execução da estampa em questão a segunda metade e o fim do século 18. Por conseguinte, podemos afirmar que a execução dos painéis do Carmo não pode ser anterior a essa época. Por enquanto, faltam-nos elementos que nos permitam indicar a data-limite, depois da qual os painéis não poderiam ser executados. Acreditamos, porém, que a época de feitura da totalidade dos 16 painéis não ultrapasse, como limite extremo, a primeira década do século 19. Os dois missais antigos que o sr. Luís Jardim teve a boa sorte de encontrar em Diamantina constituem um verdadeiro “achado”. Com o citado artigo desse autor foram publicadas duas estampas: Adoração dos pastores, copiada pelo artista desconhecido da capela-mor de Nossa Senhora do Bom Jesus de Matozinhos, do Serro, e Ressurreição de Cristo.13 Ora, a mesma estampa da Adoração dos pastores serviu de modelo a Manuel Antônio da Fonseca, que, em 1787, a reproduziu na pintura do forro da nave da Igreja São José de Itapanhoacanga, em Minas Gerais. A estampa que, por duas vezes, foi assim aproveitada por pintores mineiros coloniais é de autoria de G. F.Machado e datada de 1777.14 Manuel Antônio da Fonseca se serviu de mais uma estampa desse missal, agravura Adoração dos Reis Magos, por ele utilizada igualmente no forro da Igreja de São José de Itapanhoacanga.A gravura Ressurreição foi aproveitada igualmente duas vezes, e por artistas diferentes. Encontramos essa Ressurreição, divulgada pela primeira vez por Luís Jardim,como painel do forro da Capela dos Passos, na Cate-dral de Taubaté, no Estado de São Paulo. A outra representação, inspirada no mesmo modelo, orna o teto da Capela de Santana, do Morro do Chapéu, no município de Lafaiete, em Minas Gerais. Por um acaso feliz, conseguimos identificar mais 10modelos da série de 16 painéis, existentes na Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro. As estampas de que se serviu o autor desconhecido dessas belas obras provêm de dois livros diferentes, além de uma estampa avulsa. A obra Vida D. N. Iesu Christi ex Verbis Evangeliorum inipismet concinnata, de Bartholomaeum Riccium. S. J.,Roma, 1607, contém os modelos dos seguintes painéis da Igreja de Nossa Senhora do Carmo:
Tentação de Cristo
Cristo expulsa os mercadores do templo (pág. 20);
A pesca milagrosa (pág. 27);
Cristo convocando os apóstolos (pág. 110);
Entrada de Cristo em Jerusalém (pág. 113).

A obra Het Nieuwe Verbondt, edição de CornelisDankertz, Amsterdam, 1648, forneceu os modelos para:

Cristo e a samaritana (pág. 29);
Cristo na casa de Simão (pág. 41);
Cristo e a mulher de Canaã (pág. 51);
Transfiguração de Cristo (pág. 51).

A estampa avulsa, representando a cena de Pentecostes, se encontra no vol. 0, p. 2 da Coleção Factíciade Estampas. A Igreja de Nossa Senhora do Ó, de Sabará, em MinasGerais, conserva, entre muitos outros quadros, um painel representando a Adoração dos Reis Magos e um grande painel, As Bodas de Caná. Ambas as obras são cópias de estampas tiradas do livro Vita, Passio, Mors etResurrectio Jesu Christi, editado por Adriano Collart e Joan Galle, em Antuérpia, sem data. As estampas que serviram de modelo para os dois painéis da Igreja deNossa Senhora do Ó se encontram às páginas cinco e13 desse livro. A mesma estampa serviu de modelo para um painel da Igreja Matriz de Tiradentes, naquele mesmo estado. Os exemplos citados até aqui bastam para indicar as diferentes maneiras por que os pintores nacionais aproveitaram modelos europeus.Vimos que a comparação de obras coloniais com os seus respectivos modelos oferece uma base preciosa para melhor conhecer o cunho pessoal dos artistas coloniais. Vimos, também, que os modelos europeus podem constituir fonte segura ou, pelo menos, valioso ponto de referência para o esclarecimento de problemas de ordem cronológica. Além disto, o confronto das obras coloniais com seus modelos fornece um auxílio precioso para a solução de várias questões que dizem respeito à restauração: uma vez identificado o modelo em que se inspirou o artista nacional e verificado, por meio de cuidadoso estudo comparativo, o modo particular pelo qual cada artista patrício tratou os elementos dados pelo modelo (cópia fiel, simplificação, ampliação, etc.) obteremos um meio auxiliar seguro para reconstituir partes apagadas ou estragadas de painéis antigos. Procurar identificar modelos que serviram aos pintores coloniais constitui, pois, do ponto de vista histórico, artístico e técnico, uma tarefa altamente útil para os historiadores da arte no Brasil colonial. Contribuição de Sílvia Barbosa Guimarães Borges na escolha e transcrição do texto. De origem alemã, Hannah Levy iniciou sua formação como historiadora da arte no Instituto Warburg. Na década de 1940, fugindo do nazismo, veio morar no Rio de Janeiro, onde atuou como professora e pesquisadora da arte colonial brasileira. Artigos de sua autoria podem ser encontrados em diversos números da Revista do Sphan. Alguns deles são: Valor artístico e valor histórico: importante problema da História da Arte (n. 4), A pintura colonial no Rio de Janeiro (n. 6) e Retratos coloniais (n. 9).

Texto originalmente publicado na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional , vol. 8, Rio de Janeiro, 1944.

Notas
1 Vasconcelos, Salomão de. Ataíde: Pintor mineiro do século XVIII. BeloHorizonte: Livraria Editora Paulo Bluhm, 1941: 36. Jardim, Luís. Apintura decorativa em algumas igrejas antigas de Minas. In: Revistado Sphan , 3, 1939: 86.
2 Jardim, op. cit.: 87.
3 Sobre os artistas empregados, as datas de execução das obras dasegunda loja do Vaticano, etc. v. Rosemberg A. Raffael: Des MeistersGemaelde . 1023: 175-201 e 249, onde também se encontra umapequena bibliografia a respeito da Bíblia . V. igualmente: Suida, W.E. Rafhael . Londres: Phaidon Edition, 1941: 20.
4 As cenas se encontram nas gravuras n. 36, 39, 40, 44, 46 e 50,respectivamente, da obra de Demarne.
5 Na mesma Bíblia ilustrada de Demarne, v.3 estampa III, encontra-seo modelo de uma Coroação de Cristo, que pertence à série derepresentações da Paixão, existente na sacristia da Matriz deConceição, em Minas Gerais. Sabe-se, por documentos, que Ma-nuel da Costa Ataíde executou para aquela sacristia seis cenas daPaixão. Não ousamos decidir se esta Coroação, copiada minucio-samente de Demarne, é ou não é obra autêntica do Ataíde, por-que só a conhecemos através de uma pequena fotografia.
6 Estampas n. 74, 75, 79, 81, 83 e 84.
7 Christoph Weigel (1654-1725), gravador e editor. Como tantas outrasfiguras entre os séculos 16 e 17, Weigel latinizou o seu nome.Para outros pormenores, v. Nagler, Allgemeines Kuenstleer-Lexicon.Munich, 1815. Edição E. A. Fleischmann, v.21: 223-4. De um modogeral, não nos ocupamos aqui com os autores dos modelos emque se inspiraram os pintores coloniais.
8 Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 13: 105.
9 Cumpre assinalar que conhecemos apenas essas obras através dereproduções fotográficas, de modo que nada podemos dizer so-bre o colorido.
10 Nagler, op. cit., v. 17: 446.
11 Gaio-Portugal, Edições Apolino, 1930.
12 Soares, op. cit.: 64
13 Jardo, op. cit.: 76 e 91. A estampa Adoração dos pastores foi execu-tada segundo o painel original de Sebastião Conca.
14 Soares, op. cit., indica esta estampa à p. 64.