terça-feira, 17 de março de 2009

REFLEXÕES SOBRE A PINTURA ILUSIONISTA PARIETAL NO PERÍODO COLONIAL MINEIRO por Marcos Hill

Resumo: Este artigo apresenta um primeiro levantamento sobre um gênero de pintura frequente no interior das igrejas coloniais mineiras que, no entanto, ainda não foi devidamente estudado: a pintura ilusionista parietal. O que principalmente a diferencia da pintura ilusionista de forros é o fato dela ser sempre executada sobre os planos verticais das paredes. Tão antiga quanto qualquer outra manifestação pictórica integrada ao programa decorativo dos templos coloniais, este tipo expressivo sugere várias possibilidades de pesquisa tanto do ponto de vista tipológico quanto do ponto de vista simbólico e social. A partir de uma introdução que localiza rapidamente certos componentes categóricos da retórica barroca, vários exemplos foram identificados e organizados na tentativa de uma primeira sistematização morfológica que observa três níveis: 1) Criação da imagem arquitetônica; 2) Criação da imagem dos dogmas, dos santos e das virtudes; 3) Criação da imagem dos materiais preciosos.

Palavras-chave: Pintura - Pintura colonial brasileira - Pintura colonial mineira.

Resumé: Cet article propose une première étude des exemples d'un genre de peinture très fréquent dans les églises coloniales mineiras. Néanmoins, jusqu'à présent, ce genre n'a presque mérité l'intérêt des spécialistes. Ce qui le distingue de la peinture illusioniste des plafonds est l'axe vertical autour duquel toutes ses manifestations s’organisent. La peinture illusioniste pariétale est si ancienne que n'importe quel autre genre de peinture produit dans le contexte religieux mineiro. À partir d'une introduction très rapide nous voulons localiser les composants catégoriques de la réthorique baroque. Ensuite, quelques exemples sont identifiés. Une première sistématisation morphologique les sépare en trois niveaux: 1) Création de l’image architectonique; 2) Création de l’image des allégories des dogmes, des saints et des vertus; 3) Création de l’image des matériaux précieux.

Mots-clé: Peinture - Peinture coloniale brésilienne - Peinture coloniale mineira.







Uma introdução da retórica visual barroca.

Manifestada na região das Minas durante o século XVIII e o início do XIX, a pintura ilusionista parietal é parte específica de produtos visuais pertencentes a um contexto mental mais amplo, onde a arte forjou-se a partir de transformações fundamentais, ocorridas na civilização ocidental e efetivadas pelo menos desde o século XVII.

Dentre os principais fatos históricos que vieram determinando tais transformações, já ao longo do século XVI, estão a Reforma protestante iniciada em 1517, o Saque de Roma em 1527 e, sobretudo, o Concílio de Trento que durou de 1545 a 1563. A partir de então, encontrava-se preparado o terreno para a manifestação de uma estética que, durante o século XVII, consolidou as bases da sociedade moderna, através do fenômeno cultural que recebeu o nome de Barroco.

Com o advento do Barroco, nota-se o gradual abandono da razão natural que fundamentara o conhecimento humano durante o Renascimento. A busca de uma razão artificial tornou-se a grande motivação de uma época onde "não é mais a revelação divina ou a natureza que determinam o comportamento do homem mas esta condição particular ao homem que é a vida em sociedade", sendo que "a razão artificial que substitui a razão natural poderia ser chamada de uma razão 'social' ".

A realidade do cisma entre reformados e católicos gerou, junto às instituições religiosas, a necessidade de dirigir o comportamento social e o direito de escolha de indivíduos, cujas existências justificavam-se a partir da idéia da salvação ou da condenação. Sendo assim, a persuasão tornou-se o principal objetivo dos pregadores da fé.

Neste contexto, a arte assumiu novos critérios que afastaram-se da antiga certeza no funcionamento racional do universo. Diante da evidência das descobertas geográficas e da nova ciência física, um novo entendimento do mundo foi produzido. Neste mundo, percebidos como manifestações incessantes, o movimento e a mudança foram associados ao ritmo e aos valores da existência.

Além de traduzir tudo em imagens com concretude naturalista facilmente assimilável pela consciência, a arte barroca assumiu como função não só a divulgação das verdades da fé, através de exortações morais, mas a reprodução de modelos comportamentais previamente selecionados, representando todas as ações desejáveis endereçadas a homens, de qualquer nível social ou cultural.

Através desta estratégia visual, tanto a Igreja quanto o Estado absolutista tiveram como principal intenção condicionar a conduta individual e coletiva, sujeitando-as a um tipo de autoridade que apoiava-se no valor das aparências enquanto fenômenos que, produzidos pelo espírito humano, influenciam o comportamento. A hierarquia dos níveis sociais foi conservada e os interesses das diversas classes, manipulados no sentido de convergir para um fim comum representado pela salvação, no tocante à Igreja e pelo poder, no referente ao Estado.

A persuasão tão necessária à manutenção deste organismo unitário no qual se transformou a sociedade contou com mecanismos expressivos que, longe de seguir um princípio formal universal, veicularam um imenso repertório de imagens com significações e combinações variadas , filosoficamente regidas pela Poética e pela Retórica de Aristóteles.

Extraídos da concepção aristotélica de tragédia, sentimentos como a piedade e o terror animaram um programa artístico onde a principal meta era emocionar o espectador através da surpresa e do espanto, sentimentos que conduziriam obrigatoriamente o fiel a uma catarsis espiritual.

Para o êxito do efeito desejado, este método expressivo baseou-se na questão essencial da verossimilhança, conceitualmente justificada a partir da distinção entre o útil e o prejudicial. Tais valores foram diretamente associados ao processo de produção de imagens. Assim sendo, uma imagem útil era aquela baseada na memória, sendo a experiência histórica sua premissa. Em contraponto, as evitáveis imagens prejudiciais originavam-se no arbitrário e no capricho da fantasia descompromissada.

Ao aplicar-se o potencial persuasivo da Retórica no mundo das imagens, procurou-se então limitar os parâmetros de verossimilhança à representação dos fatos heróicos, da iconografia dos dogmas e das vidas dos santos assim como à representação da arquitetura clássica, todos fatores constituintes de uma memória histórica de homens que, vivendo em sociedade, tinham seus interesses determinados pela dinâmica das diversas circunstâncias, repartindo assim as mesmas opiniões e as mesmas crenças, fora dos limites que uma lógica meramente formal poderia estabelecer.

Desta maneira, a nova concepção de mundo refletiu-se numa arte cunhada pelo gênero retórico do demonstrativo, cujos temas a serem representados obedeciam mais a uma ordem moral do que a uma ordem intelectual. E nunca antes, a imaginação havia tido importância tão decisiva na concepção das imagens. Referenciada pelo desejo moderno de universalidade, esta capacidade de imaginar condicionou-se, como já foi referido, à repetição de fatos acontecidos, selecionados a partir das leis da verossimilhança e da necessidade, inspiradas pelas narrativas dos fatos notáveis e das Santas Escrituras.

Considerado como natural do espírito humano, este mecanismo imaginativo gerou um ilusionismo específico que engendrou, a partir das características óticas da perspectiva renascentista, uma dimensão psicológica onde a percepção do movimento "naturalmente" verdadeiro foi enriquecida pelo movimento "necessariamente" verossímil, ampliando assim qualitativamente os potenciais ilusórios da representação, transformada em meio de sugestão emotiva.

A compreensão de tal ilusionismo interessa sobretudo quando é analisada a coerência da arte que anima os templos. Neste sentido, Roma pode e deve ser considerada como o manancial original das idéias e dos modelos que definiram a arte religiosa ocidental desde o século XV.

Antes de certas cidades européias tornarem-se sedes da autoridade do Estado absolutista, já no período de Nicolau V (meados do séc. XV), a intenção de transformar a sede pontifical em capital espiritual da Cristandade justificava os esforços de especialistas como Leon Battista Alberti. A intenção essencial era a de afirmar a prioridade histórica da Igreja romana: "neste contexto histórico, as próprias ruínas antigas poderiam servir de testemunhas à existência heróica da Igreja primitiva".

Durante o papado de Sixto V (1585-1590), Roma tornou-se definitivamente o modelo de cidade ideologicamente significativa. Parte importante do programa contrarreformista deste papa era a transformação sistemática da Roma pagã em uma Roma cristã, o que resultou em um poderoso meio de propaganda política e religiosa. Esta reforma antecipou as idéias urbanísticas do século XVII, respaldando-se na justificativa retórica de tudo ser realizado "para a maior glória de Deus e da Igreja".

Além disto, duas outras razões mais imediatas motivaram a febril atividade construtiva dos templos na "cidade eterna", a partir do final do século XVI: a crescente devoção das massas e o surgimento de novas Ordens necessitando igrejas para albergar suas numerosíssimas comunidades.

Enquanto presença evidente de Deus sobre a terra, a Igreja romana utiliza-se da arte na produção do espetáculo convincente de seus ritos com o propósito de "tornar visível aos fiéis sua própria essência, se desvendando a eles e lhes mostrando que a natureza e a história, expressão da vontade divina, enquadram-na perfeitamente".

Toda a expressão visual encontrada nos programas construtivos, iconográficos e decorativos das igrejas concebidas em solo romano, desde o final do século XVI, refletem este propósito discursivo.

No que tange a arquitetura do século XVII, a morfologia e a tipologia clássicas não são modificadas radicalmente. Por outro lado, tendo sido abolidas as leis de proporção e simetria diretoras de suas funções objetivas, os elementos arquitetônicos transformam-se em "símbolo de uma função não mais ativa: a função real é sucedida pela função simbólica." Um conhecido exemplo citado por ARGAN é a colunata de São Pedro, de autoria de Bernini (c.1657) cujas "enormes colunas não sustentam nada".

Esta coerência da retórica da arquitetura é sistematicamente aplicada não apenas na estrutura externa mas igualmente em todo o espaço interno do templo barroco, não limitando-se apenas à definição estrutural mas fundamentando os programas iconográficos e decorativos.

Deste modo, tanto a manifestação da escultura, que inclui toda a escala volumétrica desde o "schiattiato" até a imagem de vulto pleno, quanto a pintura ilusionista em quadratura são permeadas por elementos arquitetônicos concebidos em diversos graus de ilusionismo verossimil. É como se a arquitetura construída quisesse se parecer com a arquiteura pintada que, desde o Renascimento, adquiriu uma significação iconográfica mais ou menos precisa, enquanto catalizador de conteúdos conotados.

Concebidas como suporte de idéias ou conceitos, estas "arquiteturas-objeto" ou seja, arquiteturas pintadas, estão na linha tradicional da arte da memória que utiliza tais construções ilusórias como elementos definidores de um programa teológico evidente.

Na relação entre a arquitetura pintada e a estrutura narrativa religiosa, tanto edifícios como elementos construtivos isolados assumem várias possibilidades significativas correspondentes a parâmetros diferenciadores de tempos e lugares ou ambas as coisas ao mesmo tempo, complexas relações dialéticas na sucessão ou oposição entre o interior e o exterior, elementos que separam e marcam as diferenças entre personagens, símbolos da santidade e da vida virtuosa dentro das igrejas e finalmente, enquanto edifício, o símbolo da Igreja que acolhe sob seu teto a quem abandona o mundo.

Deste modo, tanto a arte dos retábulos quanto a dos tetos ilusionistas são povoadas por estas representações verossímeis que, juntamente com a arquitetura externa, determinam estruturas que não representam mais um espaço tectônico e sim um espaço puramente visual.

Entretanto, não é só a arquitetura que constitui o espetáculo persuasivo e maravilhoso dos interiores sagrados barrocos. Além da retórica iconográfica dos elementos construtivos, dos dogmas e da vida dos santos, a imagem da nobreza e preciosidade dos materiais exerce um grande encanto que reforça a política do delectare e do docere. Nela, o interesse pela estrutura da visão prevalece sobre o interesse pela estrutura da coisa em si.

Um dos principais precursores da suntuosidade exacerbada nos interiores das igrejas é o mesmo Sixto V (1585-1590) que, em sua capela, começou a moda dos mármores polícromos, mantida em voga até o final do século XVIII. Em outra capela pontifical, a de Paulo V (1605-1621), os mármores coloridos, o ouro e as pedras preciosas se combinam para causar uma impressão de deslumbrante esplendor, próprio do crescente maravilhamento interno dos templos.

Ao colocar este suntuoso espetáculo à vista dos fiéis, estes mecenas cumpriam "a exigência neomedieval, expressada por pessoas como Molanus, de que a igreja, imagem e semelhança do céu na terra, devia estar decorada com os mais apreciados tesouros que houvesse".

A suntuosidade retórica do Barroco português.

Analisadas pelo historiador norte-americano Robert C. Smith, as igreja "forradas de ouro" luso-brasileiras buscam semelhante padrão imagético de riqueza e referenciam-se na retórica visual barroca engendrando o simulacro de um céu dourado onde os mínimos detalhes volumétricos evocam a verossimilhança nobre do metal precioso, transformando pedaços de madeira esculpida em monumentais peças de joalheria ensambladas.

Certamente, no império colonial português dos séculos XVII e XVIII, não houve cidade que se aproximasse em brilho e pompa a capitais como Roma, Paris e Londres. Neste contexto ibérico, houve uma maneira autóctone de assimilação dos modelos italianos que não foram docilmente aceitos. Se por um lado, a manutenção tenaz de tradições locais produziu uma forma distintamente interessante de interpretar os modelos universais e os tratados doutrinais que ensinavam o meio de imitá-los, por outro, no século XVII, só tardiamente Portugal reconquistou sua autonomia política, sendo assim determinadas especificidades na elaboração de seu programa cultural e artístico, somente viável a partir da assinatura do acordo de paz com a Espanha, em 1668.

O Barroco inicia-se efetivamente em Portugal com a manifestação do estilo Nacional, no último quartel do século XVII. E é no ouro e não no mármore que os artífices dos templos vão buscar a materialidade perceptível necessária na representação de seus céus simulados. A partir de 1707, ano de sua coroação, D. João V promove uma massiva política de importação cultural e artística, tendo como principal parâmetro estético a Roma papal.

Desenvolvido desde Lisboa e posteriormente consolidado no palácio-covento de Mafra (1717-c.1737), o tardo-barroco tentou, nos limites do rigor possível, reproduzir a forma, a imagem e aura ancestral da arte romana. Com isto, rejeitando a tradicional talha dourada portuguesa, D. João V criou uma ruptura entre o gosto da corte, expresso na utilização sistemática do mármore polícromo, e o gosto popular que adotou a talha revestida de ouro conjugando-a com a pintura quadraturista de forros. Esta síntese da da talha com a pintura manteve-se vigente até o primeiro terço do século XIX. São as igrejas paroquiais espalhadas pelo vasto território colonial os seus principais receptáculos.

Uma estratégia expressiva transposta para o Brasil.

Talvez pela condição periférica de Portugal e de suas colônias, nestes território longínquos, a retórica imagética barroca de teor aristotélico ganhou expressão diferenciada onde o terror foi neutralizado e a piedade redimensionada em função da sensibilidade religiosa portuguesa e da necessidade de revalorização simbólica da imagem do rei que, em última instância, era o principal representante da Igreja apostólica romana no reino e o senhor absoluto do “ouro” colonial.

Considerando-se ainda a pregnância do pensamento aristotélico, neste contexto a verossimilhança é o elemento predominante. Ela fundamenta o artefato artístico religioso. Transformado em seu espaço privilegiado, o interior dos templos concentrou efeitos psicológicos que, derivados se soluções técnicas adaptadas ao desejo de surpreender-se do olhar, preencheram carências simbólicas e espirituais de súditos alijados da convivência próxima com o soberano providencialista, respaldado pelo Divino.

Desprovidas de um poder econômico autônomo mas com noções rudimentares de urbanidade, as vilas e as poucas cidades coloniais brasileiras assimilaram o gosto barroco pela aparência e pelo espetáculo, manifestados na imitação que os pincéis propunham, da preciosidade de materiais reais inaccessíveis.

Esculpidas na madeira, douradas e pintadas, as epidermes internas destes templos são criadas por artesãos-pintores quase cidadãos. Elas exortam a cultura do parecer. Na aplicação generalizada do ilusionismo, a natureza da imagem pode ser analisada a partir de três níveis tipológicos presentes na propaganda persuasiva administrada pala instituição do Padroado português.

São eles o nível da criação da imagem arquitetônica, onde a morfologia e a tipologia clássicas recuperam o valor prático e de comunicação, reproduzindo assim o alegorismo arquitetônico europeu desenvolvido ao longo dos séculos XVII e XVIII; o da criação da imagem dos dogmas, dos santos e das virtudes visando, através de uma mobilização emotiva da ética religiosa, a catarse redentora da salvação; e a criação da imagem dos materiais preciosos que através dos efeitos ilusionistas de suas cores e texturas, sensibiliza a visão ávida de maravilhamento.

Neste tipo de ilusionismo pictórico encontrado nas igrejas coloniais brasileiras, recupera-se um sentido específico de verossimilhança que "se situa em um plano simbólico, na linha da nobreza que corresponde à santidade". Por outro lado esta ilusão das coisas preciosas constitui uma "alusão social que designa por sua vez, por meio da metáfora, o nível privilegiado dos santos na hierarquia dos valores espirituais e também a relação que une valor espiritual e aristocracia social".

No contexto social limitado de seus centros urbanos, as únicas oportunidades concretas de se experimentar o delectare e o docere restringem-se basicamente ou ao espaço interno das igrejas paroquiais e capelas de irmandade ou aos virtuais espaços externos das procissões.

Os casos mineiros da pintura ilusionista parietal.

A pintura ilusionista parietal encontrada na região das Minas foi produzida entre cerca de 1725 e 1830. Para distinguí-la da pintura ilusionista de forros é importante frisar que ao contrário desta, ela preenche superfícies definidas por eixos verticais, podendo assim receber a classificação de parietal. Na sistematização de seu estudo, foram utilizados os três níveis de criação imagética anteriormente referidos:

1) Criação da imagem arquitetônica.

É curioso perceber como a falta de uma cultura urbana arrojada determina singularmente do espaço em terras luso-brasileiras. No que tange o programa arquitetônico religioso, o estilo chão é a fórmula secularmente persistente quando se trata da definição visual externa dos edifícios. É portanto no interior das igrejas que as primeiras inovações formais aparecem.

E mais revelador ainda é o fato destas realizações ocorrerem ao nível epidérmico das estruturas simuladas dos retábulos e dos revestimentos parietais e não ao nível das reais estruturas arquitetônicas. Sendo assim, no caso luso-brasileiro, guardadas as notáveis excessões, a manifestação plena do verossímil restringe-se ao aparato decorativo interno, suporte definitivo das técnicas artísticas ilusionistas.

A imagem arquitetônica presente na pintura ilusionista parietal manifesta-se com eloqüência no início do período joanino mineiro. Este artifício pictórico substitui a estrutura de talha dos retábulos. Uma de suas principais características é a grande variedade cromática das composições em oposição ao monocromatismo dourado da talha do mesmo período. Suas cores predominantes são o vermelho, o azul da Prússia, o ocre e o branco. Dentre os mais belos exemplos estão os retábulos laterais da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Camargos, nos retábulos colaterais da Capela do Taquaral.

Sendo estilisticamente vinculada à produção artística joanina, esta pintura será precursora da pintura ilusionista de retábulos da segunda metade do século XVIII. A presença deste gênero no Brasil é primeiramente perceptível no litoral brasileiro, onde várias igrejas adotaram-no antes de terem condições financeiras para a execução dos onerosos retábulos de talha dourada.

Entre os exemplos conhecidos podemos citar o caso do primitivo retábulo-mor da igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro (já desaparecido) e o dos retábulos da igreja do antigo convento carmelita de Olinda (os do transcepto esquerdo e o da capela-mor, encontrados ainda em bom estado quando descobertos, há alguns anos).

A mesma falta de recursos motiva a concepção dos exemplos rococós mineiros. Dentre eles temos os retábulos colaterais da Capela do Rosário de Catas Altas, os retábulos laterais do Rosário de Ouro Preto e o retábulo-mor da capela do Rosário de Santa Bárbara. Tal falta de recurso incidindo sobre templos cujo orago é Nossa Senhora do Rosário revela um traço sócio-econômico de relevância, na medida em que esta devoção era a preferida de negros escravos e forros.

Resta-nos comentar a mais popular técnica ilusória aplicada à estrutura arquitetônica do espaço interno. Desde meados do XVIII, ela aparece na arte suntuária religosa mineira. Trata-se da imitação do mármore polícromo sobre elementos arquitetônicos de madeira. Talvez o exemplo mais antigo em Minas seja o das colunas torsas das paredes laterais da capela-mor da Matriz de Cachoeira do Campo. Seus fustes imitam um mármore róseo.

Um requintado exemplo é o dos fustes das colunas quase-salomônicas do retábulo-mor do Pilar de Ouro Preto. Neles, a técnica de pintura é esmerada recuperando o realismo da lisa superfície de um belo mármore verde. Nas falsas pilastras da nave o requinte se conserva.

A partir da segunda metade do século XVIII, a técnica dissemina-se como havia ocorrido com a talha dourada no período anterior. Não só os fustes de colunas e pilastras mas todos os elementos estruturais acabam por receber uma policromia marmórea que, popularmente é conhecida como o “faiscado”. Como numa espécie de conjugação cromática que inclue os forros e talhas, suas cores predominantes são o vermelhão e o azul da Prússia, sempre contrastando com fundos mates e brancos. Os elementos mais comumente “faiscados” são as cimalhas de capelas-mores, naves e sacristias. Retábulos e pequenos oratórios participam desta padronização ornamental.

Praticamente todos os interiores de igrejas mineiras, construídas a partir da segunda metade do século, recebem este tratamento ornamental. Há exemplos nos quais o mestre pintor, esquecendo das preocupações realistas da imitação do mármore, cria desenhos que sugerem belas abstrações.

Entre os inúmeros exemplos, temos o interior das Matrizes de Santa Bárbara, Catas Altas, Itaverava e Congonhas, assim como as capelas franciscanas de Mariana e de Ouro Preto, sem esquecer a carmelita de Diamantina. Nesta cidade, o vermelhão e o azul da Prússia não são utilizados tão freqüentemente como na região central da capitania.

Na região de Mariana, o delicado jogo cromático entre vermelhão e azul da Prússia pode ser encontrado no interior luminoso da Capela do Rosário de Santa Rita Durão. Seu espaço interno é inteiramente unificado por estas cores. Detalhes dourados e superfícies brancas completam uma das mais belas policromias de interiores rococós mineiros.

Os mármores polícromos fingidos podem ainda ser encontrados nos frontais de mesas de altar do tipo sarcófago, cujos perfis são curvilíneos. É o caso das mesas dos altares laterais da Sé de Mariana que, correspondendo à esta forma, própria dos móveis de estilo Rococó, recebem uma policromia que se assemelha a diversos tipos de mármore.

2) Criação da imagem dos dogmas, dos santos e das virtudes.

Exclusivamente vinculado à iconografia religiosa, este tipo de imagem é mais específico da pintura ilusionista de tetos e forros, havendo exemplos citáveis em alguns interiores de retábulos,oratórios e mesas de altar. Certamente nos silhares da capela-mor da igreja franciscana de Ouro Preto, de autoria de Manuel da Costa Ataíde, os anjinhos que ostentam instrumentos de penitência poderiam ser enquadrados neste tipo de representação imagética.

Seu rico programa iconográfico não corresponde exatamente à definição estudada. Representando o clássico paralelismo entre o Velho e o Novo Testamento, através da aproximação feita entre Abraão e Jesus, suas cenas foram copiadas de uma Bíblia editada pelo artista gráfico Demarne em 1728. Pintadas em azul da Prússia e branco elas aproximam-se mais da coerência composicional de quadros convencionais do que de naturezas verossímeis autonomamente representadas no espaço.

Algumas pinturas antropomorfas de interiores de mesas de altar poderiam ser igualmente citadas. É o caso do móvel encontrado na sacristia à direita da capela-mor da Capela do Rosário de Santa Rita Durão. Esta pintura é atribuível ao mestre João Batista de Figueiredo e possivelmente ainda da segunda metade do século XVIII.

3) Criação da imagem dos materiais preciosos.

Neste nível, os principais materiais imitados são o azulejo, o embutido, a “grisaille”, os mármores polícromos, os tecidos preciosos e a laca chinesa.

Este tipo de imitação inspira-se nos azulejos que cobrem os silhares das paredes de naves, capelas-mores e claustros, segundo a tradição portuguesa. Inúmeras igrejas do Rio de Janeiro (Outeiro da Glória), Salvador (Igreja da Misericórdia) e Recife (Igreja de Santo Antônio) possuem este revestimento cerâmico. No contexto mineiro, o único exemplo real conhecido é o da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Ouro Preto (c.1770).

Entre as razões pelas quais o azulejo não prosperou em Minas, está a proibição de sua produção na colônia e a dificuldade de seu transporte do litoral brasileiro para o interior continental.

Sendo assim, a imitação deste “requintado” produto metropolitano já aparece nas primeiras pinturas sobre revestimentos parietais mineiros. É o caso dos silhares da capela-mor do Padre Faria de Ouro Preto. Ainda não se conhece a autoria e possivelmente eles foram executados no primeiro terço do século XVIII.

Sobre estas paredes laterais, estão fixados painéis pintados em azul da Prússia e branco, representando cenas profanas de caça e outros divertimentos aristocráticos, temas muito comuns na típica azulejaria portuguesa importada pela Colônia, presente me monumentos do litoral brasileiro (vide os claustros franciscanos de Salvador, Olinda e João Pessoa).

Uma observação interessante pode ser fita no exemplo da Capela do Padre Faria. A pintura reproduz literalmente os painéis azulejados com as linhas formadas pelas juntas dos azulejos executadas com pincel. A princípio, este seria, em Minas, o único caso conhecido que realmente explicita a intenção de imitar o material cerâmico com preocupação realista.

Complementando as superfícies parietais dos interiores religiosos, além da imitação do azulejo, anteriormente comentada, existe uma outra técnica muito apreciada nas igrejas portuguesas desde meados do século XVII. Trata-se do “embutido”, mosaico com mármores coloridos que, como recurso decorativo, foi herdado do Renascimento florentino.

Em Portugal, sua função é a de animar superfícies como os intradorsos de arcos, as paredes de capelas laterais, os frontais e banquetas de altares, os pisos de capelas-mores, etc. Os mais endinheirados chegavam inclusive a encomendar retábulos inteiros concebidos nesta técnica.

Primeiramente, são criados desenhos ornamentais compostos de folhas de acânto, flores em guirlandas ou de formas geométricas simétricas. Em seguida, eles são transferidos para os mármores rosa, preto e branco, cores próprias das jazidas portuguesas.

Delicadamente cortados nos formatos dos elementos decorativos, eles compõem belos mosaicos. Os mármores são, em seguida, fixados sobre as superfícies desejadas. Um trabalho de gravação de finos sulcos completa a etapa de acabamento. Tais sulcos são ainda preenchidos por pastas coloridas de vermelho, preto e ocre, ampliando a riqueza cromática da composição.

Em cidades litorâneas como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife podemos encontrar raros exemplos desta técnica, no piso da capela-mor da Capela da Ordem terceira franciscana carioca e nos altares de algumas das capelas laterais da Sé de Salvador.

Assim como o azulejo, esta suntuosa técnica decorativa era inaccessível à sociedade colonial mineira. Nem por isto, os artistas decoradores dos ricos interiores sagrados deixaram de simulá-la e o fizeram através da pintura.

Um destes belos exemplos encontra-se no intradorso do arco-cruzeiro e das paredes laterais da capela-mor do Padre Faria. O mesmo tipo de imitação aparece na Capela do Bom Jesus do Taquaral (altares colaterais) e na matriz de Ouro Branco (intradorso e cimalha do arco-cruzeiro) assim como em vários outros espaços internos.

Estas imitações recuperam com exatidão os elementos fitomórfos dos embutidos portugueses. Suas únicas cores são o vermelho, o azul escuro e o branco. Todos os detalhes de linhas estão desenhados em azul, com ponta de pincel.

Outra técnica imitativa que se aproxima formalmente do embutido é a “grisaille” originária da palavra francesa “gris” que significa cinza. Trata-se de uma técnica pictórica que remonta pelo menos ao século XV. Ela consiste em representar a tridimensionalidade de elementos decorativos ou imagens antropomórficas somente com as cores preto e branco e todas as possíveis gradações de cinza, dando-lhes a aparência do relevo esculpido. Ela é uma variante dos “trompe-l’oeil” presentes na arte decorativa das igrejas luso-brasileiras.

Desde o século XV, esta pintura ilusionista foi uma constante das partes externas das portas dos antigos retábulos flamengos. Sua presença nas igrejas de Minas é mais rara. No entanto podemos encontrá-lo no intradorso do arco externo do retábulo de Santana, primeiro lateral direito da Matriz de Catas Altas.


Os frontais de altar retangulares correspondentes ao estilo joanino recebem a imitação de tecidos preciosos como os brocados e as sedas bordadas com motivos florais coloridos . O todo é normalmente acabado por vieses e franjas constituídos de fios de ouro .

Suas superfícies são divididas por uma modulação que remonta aos tradicionais antependia (frontais) medievais. O formato retangular é típico das mesas de altar dos estilos Nacional e Joanino, podendo também ser encontrados no contexto rococó.

É o caso do frontal do altar colateral direito da Capela do Rosário de Santa Rita Durão. A talha do retábulo é atribuída ao Aleijadinho e a pintura do frontal imita um lindo tecido de seda branca bordada com belas e graúdas flores coloridas em matizes de vermelhão, azul da Prússia e verde. Os acabamentos em fio de ouro foram pintados com ocre e branco.

Outro tecido apreciado pelos pintores é o brocado, geralmente encontrado nos camarins dos retábulos joaninos. Nestes casos, a imitação possui predominantemente uma coloração marrom avermelhada, tendendo para o terra de Siena. Esta cor quente evoca a púrpura do mais autêntico brocado. Usando duas tonalidades, uma mais clara e outra mais escura, ela reproduz as padronagens com motivos fitomórfos, próprias do tecido precioso. O camarim do retábulo de São Sebastião, segundo lateral direito da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas é um bom exemplo.

Durante a segunda metade do século XVIII, a pintura mais utilizada nos camarins reproduz a seda bordada com buquês de flores coloridas. Apesar de bem claros, seus fundos variam entre o azul e o branco. Os pequenos buquês que decoram este tipo de revestimento são uma característica constante na pintura imitativa deste período, da qual Ataíde é um dos principais mestres.

Neste nível, resta ainda a citação da laca chinesa, cuja imitação é conhecida em Portugal pelo nome de “charrão”. Seus exemplos são mais abundantes. Produto colonial celebrado por sua beleza e raridade desde o final do século XVII , sua presença indica requinte e bom gosto. Normalmente são três as cores que combinam com o dourado da folha de ouro: o vermelho, o azul escuro e o verde escuro. O maior exemplo português da utilização do charrão é uma grandiosa obra leiga, cuja construção e decoração mereceram o financiamento do rei D. João V: a Biblioteca da Universidade de Coimbra (1717-1728) .

Nas igrejas mineiras, a cor predominante é o vermelho. Sua presença é constatável no retábulo de São Gonçalo (c.1738), segundo lateral esquerdo da Matriz de Catas Altas assim como no colateral direito (retábulo de São Miguel) da Matriz de Santo Antônio de Ouro Branco.

Com suas “chinesices”, a laca fingida espalha-se pelo interior das igrejas, entre a primeira e a segunda metade do século XVIII. Não só os interiores dos camarins recebem esta decoração. No próprio retábulo de São Gonçalo, já citado, seu arco externo é igualmente ornado com “chinesices” em toda a sua extensão.

Entre outros exemplos mineiros, temos o grande arco externo do retábulo do Senhor dos Passos, no transcepto lateral esquerdo da Matriz de Catas Altas; o interior (forros da nave e capela-mor com coloração vermelha) e as portas da capela-mor da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará; o arco-cruzeiro da Capela de Nossa Senhora do Ó na mesma cidade; os espaldares do cadeiral da capela-mor da Catedral de Mariana; e as credências da capela-mor da Matriz de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo, entre outros.

Conclusão

Com base na teoria da representação barroca, refletiu-se sobre um gênero de pintura pouco estudado apesar de sua freqüência no contexto colonial mineiro. O atual trabalho apresenta a provisória sistematização. A natureza diferente desta arte instiga a curiosidade e a admiração. A curiosidade concentra-se na qualidade ilusória de sua representação e nas ingenuidades técnicas ocorridas em dignas tentativas de simulação de espaços perspécticos ou de superfícies preciosas.

Já a admiração envolve a própria intenção de se reproduzir um tipo de arte que finge ter o que não se tem. Seus resultados rudimentares narram os esforços de uma sociedade colonial oprimida. Eles indicam uma vontade de produzir efeitos psicológicos e simbólicos que fundem, na semântica temporal e espiritual, valores hierárquicos sociais e valores de santidade.

Dificuldade de nenhuma ordem impediu que as isoladas comunidades mineiras aspirassem aos paroxismos de beleza e riqueza, mesmo que para tal fosse necessário o recurso a artifícios aparentemente primários e ilusórios. Os parâmetros materiais e morais tornaram-se o “leit motiv” de um tipo de simulação visual que transforma a impossibilidade de acesso a riqueza e ao poder em uma possibilidade perceptível.

E, através desta possibilidade, mecenas e artistas coloniais resgataram alguma valorização social e, sobretudo, a esperança de salvação, garantida através do milenar ritual de troca, onde os falsos ornamentos de ouro e a falsa suntuosidade epidérmica de suas igrejas valeram-lhes como fonte única de comunicação com Deus.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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