segunda-feira, 9 de março de 2009

O que são as VANITAS?

VANITAS VANITAS ET VANITATEM
VANITAS VANITATUM
VANITAS VANITATIS ET OMNIA VANITAS




Vanitas localizado no Nártex da Igreja Matriz de São Francisco de Assis em Ouro Preto, Minas Gerais.

As VANITAS (vaidades) são as expressões artísticas que traduzem, de maneira simbólica e num registo eloquente, sibilino, a nossa relação conflituosa com a morte. São formas artísticas históricas, datadas no tempo (e no entanto de sentido intemporal), que nos confrontam com a maior doença colectiva da humanidade, que é a angústia que resulta da consciência aguda da mortalidade.
São uma espécie particular, muito específica e típica, emblemática, de natureza-morta. São pinturas de genere peculiares, com uma temática de grande efeito e afirmação de diferença. Género singular de natureza-morta intensamente expressiva e de complexa significação, de óbvia alusão filosófica (acentuada muitas vezes pelas legendas eruditas) e de comentário a um tempo sarcástico e cínico, macabro, pretendendo expressar edificante sabedoria moral e imperativo aviso para reflexão radical, em que é feita a comparação por contraste total, entre a precaridade efémera dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas do Homem, o engano pelo apego excessivo pelas riquezas materiais de que se rodeia; e a realidade ameaçadora do triunfo final da morte tudo nivelando num nada fáctico, sendo representada a "mofina" em evidência perturbadora, pelo seu emblema mais imediato e certeiro - a caveira - o crânio humano.
Modelo paradigmático muito recorrente e prolixo, particular forma de encenação retórico-alegórica, foi tema "na moda" pelos fins do século XVI e por todo o século XVII, e mesmo ainda glosado tardiamente no início do século XVIII, por toda a Europa. Teve o género uma enorme divulgação, enquanto "ilustração intelectual" em voga, nos países-baixos pelos idos de 1620 e seguintes, interpretado de maneira muito singular pelos artistas da Escola de Leyden.



As mais remotas vanitas, ou melhor o seu "antepassado directo", os memento mori (recorda a morte), a representação solitária da caveira, são ainda do século XV, flamengos, executadas em geral no verso dos volantes dos trípticos, sendo depois acrescentadas com os objectos mundanais em sugestivas composições (já verdadeiras vanitas), com a sua grande divulgação posterior ao Concílio de Trento e às convulsões reformistas/contra-reformistas, meados e finais do século XVI, correspondendo também ao ambiente da terribilitá nascido do exemplo edificante que foi o monumental Juízo Final, de Miguel Ângelo Buonarroti Simoni, da Capela Sistina, do Vaticano, tendo-se desenvolvido o seu gosto estranho, que atravessa os vários estilos (o tenebrismo, o maneirismo e finalmente os primórdios do barroco) por toda a Europa - Alemanha, França, Espanha, Itália, Flandres, Países-Baixos.
O seu período áureo foi o do século XVII, aliás o grande século das naturezas-mortas como género de excelência nos repertórios pictóricos. Essas naturezas-mortas, veristas e ilusórias, em minuciosa técnica de trompe-l'oeil, são mesmo justificadas nos textos críticos legitimadores, os tratados, como um alegado regresso desejado às lendas miméticas dos antigos pintores da Grécia Clássica - Apeles, Zêuxis e Parrácios - citados expressamente, inúmeras vezes.
O significado directo e último das vanitas, explícitas que são na sua referencialidade óbvia, é sobretudo o de uma advertência séria, severa, um verdadeiro aviso, uma repreensão lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas, a inconsciência alheada dos excessos e finitudes várias do Homem - os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas, os seus apetites venais insaciáveis, as suas perigosas irracionalidades, as suas pulsões inconfessáveis -; e, em geral, uma distância circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primários, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados. Que têm um fim! - é esse o aviso.
A eficácia da advertência e aviso é conseguida pelo efeito de contraste violento estabelecido entre o crânio humano, a caveira, às vezes também as tíbias, mesmo o inteiro esqueleto, sinais escatológicos manifestos do ameaçador fim dos fins, colocados em evidência de primeiro plano, em recorte contrastante com os objectos que os rodeiam, de ostentação e aparato, de erudição e estudo, de pompa e fausto, dispostos em minuciosa e verista composição formal, de apurado sentido lumínico-cénico e forte carga dramática.
Temas apocalípticos milenaristas, dramaticamente ameaçadores, mais escatológicos que teleológicos (mostrando mais o fim do que eventual redenção), são alegorias terríveis de eficácia significativa, composições muito elaboradas, mas com explícito artifício de citação retórico-moralista, que conseguem invulgar eloquência ao expressar, de modo artístico simbólico, pela pintura, gémea da poesia (dizia Horácio), um comentário categórico sobre a sabedoria irónica do "trabalho" da morte, finando cerce a ilusão posta nas vaidades terrenas. Um apelo ao instante arrependimendo que tarda, pela vacuidade da vida guiada pela mais leviana ilusão, ao aproximar-se, com o triunfo derradeiro da morte, o severo fim para as frivolidades mundanas.
São histórias contadas visualmente, narrativas exemplares, com um recorte moral fortíssimo, um registo severo de recriminação ética, com um alcance filosófico que poderemos chamar mesmo de proto-existencialista.
Pretende-se com estas naturezas-mortas de particularíssimo sentido patético, traduzir o discurso melancólico-ascético, contemplativo, estóico, puritano, saído das convulsões ideológicas e religiosas do século XVI, um discurso condenador das materialidades mais apelativas do viver mundano, e ainda das actividades predadoras e hieraquizadoras do viver social com todo um rol de evidentes iniquidades, a injustiça revelada na desigualíssima distribuição dos bens e riquezas, a roda da fortuna separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos e tudo deixando, muito uns, outros pouco, (justiça final, ironia última do fim dos tempos!), das satisfações cegas dos prazeres mais primários e sórdidos, dum hedonismo fetichista cada vez mais generalizado - sinal dos tempos - a modernidade do capitalismo emergente.
Mórbidos, fúnebres, macabros, tétricos, são bodegones intemporais, porque anunciam a verdade mais radical de todos os tempos, de sempre - a Morte - o fim súbito e derradeiro do epicurismo instante de todos os tempos, que aproveita com sofreguidão a precaridade escassa dos momentos agradáveis e felizes da existência, as raras oportunidades de gozo, e deleite, dos chamados "pecados veniais" (os cabalísticos sete vícios). Para os "pecadores" a honesta volúpia dos prazeres (infelizmente) demasiado efémeros